Corrosão do STF fortalece teses autoritárias
Não. O Brasil não está nos estágios finais de um golpe de Estado. Mas flerta perigosamente com o começo do caminho
O Brasil não está à beira ou caminhando para um golpe clássico. Não há nem haverá tanques nas ruas ou, novamente, ameaça formal às eleições. O risco é outro. Mais discreto, mais brasileiro. E isso nasce quando as instituições que deveriam ser guardiãs da constitucionalidade passam a agir como se não devessem explicações. Quando a exceção, às vezes necessária, vira método. E quando o Judiciário, sobretudo a mais alta instância, começa a se enxergar menos como limite do poder e mais como um poder soberano em si.
Esse não é um fenômeno inédito na história nacional. A Constituição de 1946, por exemplo, foi sendo esvaziada ao longo da década de 1950 por estados de sítio sucessivos, decisões excepcionais reiteradas e pela tolerância judicial a abusos do Executivo. Quando o golpe de 1964 veio, ele não encontrou um sistema institucional robusto e vigilante, e sim um país acostumado a atalhos, exceções e acomodações. O autoritarismo foi sendo gestado na normalização do anormal, exatamente como quer essa estúpida Lei da Dosimetria.
O caso do Banco Master não sai dos holofotes e não é à toa. É dos mais ilustrativos porque reúne tudo de errado num único episódio. Dias Toffoli puxa a investigação para o Supremo com base na mera menção a um parlamentar. A partir daí, o processo passa a tramitar sob sigilo extremo, exceto a quem o próprio ministro escolhe. O STF deixa de ser instância julgadora e assume protagonismo direto na condução do caso: interfere no ritmo, convoca acareações ilegais e claramente viciadas e tenta reorganizar o jogo a seu feitio.
Presença insustentável
Paralelamente, surgem fatos que, em qualquer democracia minimamente madura, seriam tratados como problema institucional grave: a viagem em jatinho ao lado de advogado ligado à defesa de investigado; a explicação protocolar de um ministro sobre sua gestão pessoal a autoridades ligadas ao caso; contratos advocatícios milionários e oportunistas com parentes de magistrados; a ausência de qualquer gesto de autocontenção. Pode até não haver crime nesses fatos. Mas o dano não é penal. É político. É simbólico. É corrosivo. É real.
O ministro Alexandre de Moraes aparece nesse contexto não como mais uma exceção, mas como a expressão de um modelo que vem se consolidando. Um magistrado que investiga, decide, pune, estabelece parâmetros do debate público e delimita o que é aceitável, ou não, no campo político, já era suficientemente inadequado. Mas a questão envolvendo sua esposa e seu contato direto com Gabriel Galipolo, presidente do Banco Central, transformou-o em um ministro suspeito e corrosivo à imagem da Justiça como um todo.
Atenção: isso não é uma acusação formal ou mesmo criminal. É mera constatação fática e estrutural. Democracias não funcionam quando ministros do Supremo concentram funções incompatíveis e atuam de forma suspeita. Funcionam quando dispersam poder, criam fricção e aceitam limites. O STF brasileiro, porém, caminha na direção oposta. E Gilmar Mendes – sempre ele! – fecha o triângulo do mal ao tentar impedir ou reduzir drasticamente a possibilidade de impeachment de ministros da Suprema Corte.
O passado ensina
Ainda que a tentativa “gilmariana” tenha sido parcialmente revertida, a lógica e a intenção ficaram expostas. E coisas assim, uma vez reveladas ao respeitável público, não voltam para a gaveta. Esse tipo de ambiente não produz credibilidade e estabilidade. Ao contrário. Produz cansaço, ressentimento. E produz o cenário ideal para o surgimento de um autocrata tirano, como venho alertando, há anos, em textos quase desesperados nos veículos em que tenho a oportunidade de escrever ou de falar.
E não apenas o autocrata tosco, histriônico, mambembe como Jair Bolsonaro. Pois a “classe” também aprende, refina métodos e troca o figurino. Um outro aspirante a ditador, que se apresente como “corretivo”, que prometa “reorganizar as instituições”, “colocar limites”, sempre em nome da democracia, claro, como fazem os próprios capas-pretas supremos, provavelmente, irá surgir. Sempre com apoio popular. E sempre explorando o desgaste acumulado de quem deveria ter se contido antes.
Como lembrei recentemente, o Brasil já viveu algo parecido. Em 1990, Fernando Collor assumiu a Presidência em meio ao desespero da hiperinflação. A população estava perdida, angustiada, disposta a aceitar qualquer solução que viesse com linguagem técnica e promessa de ordem. O Plano Collor confiscou a poupança e as aplicações financeiras dos brasileiros. O Estado bloqueou, por decreto, o dinheiro de milhões de pessoas. Aquilo não foi apenas um erro econômico. Foi uma violência institucional gigantesca.
Recordar é viver
As pessoas perderam economias de uma vida inteira. Muitas entraram em depressão profunda e morreram. Empresas quebraram. A confiança no sistema foi destruída. Mas o ponto central: nem o Congresso nem o Supremo se insurgiram de forma efetiva. Houve desconforto, debates, indignação difusa. Mas o essencial passou. Criou-se o precedente de que, em situação “excepcional”, o Estado pode tudo. Com apoio popular, então, é que pode mesmo. Aí mora o grande perigo! A população estava cansada e desesperada.
Vale lembrar outro fato histórico e que corrobora o meu temor: o Supremo não foi fechado durante o regime militar. Continuou funcionando. Julgou. Referendou os infames atos institucionais. Conviveu com as cassações, as suspensões de direitos e exceções permanentes. O autoritarismo brasileiro não precisou destruir o Judiciário. Bastou contê-lo, pressioná-lo e, quando conveniente, utilizá-lo. Democracias não morrem apenas quando os tribunais são fechados. Morrem quando os tribunais passam a conviver com o inaceitável.
É assim que autocracias modernas se constroem: não pela ruptura explícita, mas pelo acúmulo de precedentes tolerados, pelo silêncio institucional e pela fadiga social. A Hungria, de Viktor Orbán, seguiu esse roteiro. Mudanças constitucionais sucessivas, enfraquecimento do Tribunal Constitucional, captura gradual dos freios institucionais. Tudo feito por lei, com maioria parlamentar, sob o argumento de “reformas necessárias”. O Judiciário não foi fechado. Foi domesticado. E o povo, obviamente, aplaudiu.
É no mundo, estúpido
Na Polônia, o governo do PiS alterou regras de nomeação e disciplina de juízes, provocando uma crise institucional profunda com a União Europeia. O Tribunal de Justiça da UE declarou que o Tribunal Constitucional polonês não atende aos requisitos de independência e imparcialidade. Mais uma vez, não houve golpe clássico. Houve engenharia autoritária legal. Pergunte se a população polonesa apoiou ou se insurgiu contra as novas regras? Na boa, é assustadora a cegueira histórica da nossa elite política.
A Turquia oferece o mesmo. Após a tentativa de golpe de 2016, o governo Erdogan promoveu expurgos em massa no Judiciário, aprovou emendas constitucionais que concentraram poder no Executivo e reduziram drasticamente os contrapesos institucionais. Tudo sob o discurso da defesa da ordem e da estabilidade. E nem mesmo as democracias mais consolidadas estão imunes. Vejam o que ocorre, atualmente, nos Estados Unidos sob Donald Trump. O laranjão aloprado está passando o trator sore tudo e todos.
Não. O Brasil não está nos estágios finais de um golpe de Estado. Mas flerta perigosamente com o começo do caminho. Quando o STF acumula funções incompatíveis, se fecha em sigilo, reage mal à crítica e ensaia mecanismos de blindagem, ele não fortalece a democracia. Pior. Enfraquece a confiança no sistema. E confiança perdida não se recompõe com notas técnicas vazias, votos longos ou solenidades com magistrados chorando. Muito menos com familiares de ministros enriquecendo de forma desproporcional.
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Comentários (2)
Ita
26.12.2025 11:46Caro Ricardo, acredito que poderia também ter usado exemplos de governos ditatoriais de esquerda tais como Venezuela. Claro, não quiz julga-lo parcial, só uma observação.-
Rosa
26.12.2025 11:23Sempre excelente!!